GONÇALØ INCENDIÁRIO

Caminhamos por um chão de cimento pisando aqui e ali umas folhas secas. Não se trata de um ateliê bem composto, preparado para nos receber, e ainda bem. O espaço divide-se entre um barracão e uma espécie de escritório onde “As palavras e as coisas” de Foucault se misturam com “Van Gogh” e “Calvin & Hobbes”. Aquele é o local onde trabalha e é simultaneamente um espaço de prazer e descanso. Ali decorre, como explica Gonçalo, “a briga entre o processo e o fim”. Para si, o produto final “é tão importante como o processo” e este último é descrito como “um ritual fascinante”. O fruto do seu trabalho não é aleatório, é tão reflectido que chega a classificar o pensamento como “um inimigo”. Palavras com um sentido que apenas apreendemos totalmente quando mais tarde o observamos a trabalhar.

O fascínio pelo fogo começou cedo, quando aos sete anos decidiu queimar as pontinhas do papel de jornal que cobria a montra da loja da mãe e acabou por a incendiar. O seu trabalho com o fogo pretende representar um processo de “intimismo, ausência, vazio”, explica. “O suporte é corroído da mesma forma que a angústia corrói o ser”. Talvez por isso sinta uma grande dificuldade em separar-se dos seus trabalhos. Sente uma necessidade de conhecer o tipo de pessoas que vão ficar com o produto do seu trabalho, e perceber o que estas apreendem da sua obra.

O caderno de desenhos segue-o para todo o lado. Já nos tinha demonstrado o uso do fogo no papel num pequeno encontro uns dias antes num café. Desta vez o processo é ligeiramente diferente. Com as duas mãos, agarra a chapa enorme. Devagar, deixa-a cair e o ritual começa. O Gonçalo que esteve connosco até ali saiu daquele espaço e deu lugar ao Gonçalo Incendiário. De cara fechada, num sinal de concentração, espalha a tinta e com o isqueiro pega-lhe fogo. A chama projecta-se, a luz e o calor abraçam-nos. No chão, a chapa sofre a transformação como uma “ferida aberta”. Até que o incêndio se extingue lentamente, ouve-se uma gargalhada, e o sorriso volta a surgir na sua cara. 

O vinil dos Pink Floyd começa entretanto a tocar. O instrumento de trabalho passa a ser uma tela, onde o uso de um frasco de tinta se intercala com o uso do isqueiro. A tela acaba por arder totalmente mas o efeito final é deslumbrante. Podíamos pensar que se trata de uma experiência que correu mal mas, no fundo, “faz tudo parte do processo”. Gonçalo é uma alma incendiada, simpática, cujos talentos se estendem à fotografia. Uma certa tristeza chega-lhe aos olhos quando lhe perguntamos se pode viver do que gosta de fazer. Em Portugal, por enquanto, isso está fora de questão.

P. Pato

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We walk through a concrete floor stepping a few dry leaves here and there. This is not a tidy studio, ready to receive us, and rightly so. The space is divided between a shed and a kind of office where the "Order of Things", by Foucault, mingle with "Van Gogh" and "Calvin & Hobbes." This is the place where he works and simultaneously a space of pleasure and relaxation. Here is where, as Goncalo says, "the fight between the process and the end, happens”. To him, the final product is "as important as the process" and this one is described as a "fascinating ritual." The fruit of his labor is not random, in fact it’s so reflected that he classifies thought as "an enemy". These are words with a meaning that we only understand when we watch him work.

The fascination with fire started early when, at age seven, he decided to burn the tips of newsprint covering the storefront of his mother shop and it eventually started to flare. His work with fire intends to represent a process of "intimacy, absence, emptiness", explains. "The base is destroyed in the same way that distress destroys the being." Maybe that’s the reason why it’s so difficult for him to detach from his works. He feels a need to get to know the people who will acquire his works, and understand what they perceive of them.

The sketchbook follows him around everywhere. He already had demonstrated the use of fire on paper in a small meeting we had in a coffee shop a few days before. This time the process is slightly different. With both hands, he grabs a huge plate. Slowly, drops it and the ritual begins. The Gonçalo who had been with us until now, gave place to Gonçalo Incendiary. Frowning, a sign of concentration, he spreads the ink and with the lighter catch it on fire. The flame is projected, the light and warmth embrace us. On the ground, the plate suffers a transformation as an "open wound". The fire extinguishes slowly, you hear a laugh, and a smile emerges back on his face.

Meanwhile, the Pink Floyd vinyl begins to play. The instrument of labor becomes a canvas, where the use of an ink bottle intercalates with the use of a lighter. The canvas eventually burns completely but the final effect is stunning. We might think that this is an experiment that went wrong but it’s just "all part of the process." Gonçalo is a burning soul, friendly, whose talents extend to photography. A certain sadness emerges in his eyes when we ask him if he can live of what he likes to do. In Portugal, for now, this is out of the question.

P. Pato

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